Fotografia a preto e branco (250x200cm), luz intensa, penumbra, ermida, porta intermitentemente fechada (ou aberta), observadores

Olhando para uma mesma fotografia em diferentes contextos – livros, catálogos, exposições –, às vezes em diferentes formatos, surpreendo-me sempre com as suas extremas transformações. Parece diferente; e é diferente. É radicalmente alterada pelo local, tamanho, vizinhança – grande vulnerabilidade da imagem fotográfica, e que pode ser simultaneamente a sua grande força (e talvez por isso alguém já tenha afirmado que a história da fotografia deve ser considerada inseparável da história dos seus suportes).
A primeira vez que vi a fotografia que Alberto Plácido agora mostra em Monsaraz ela inseria-se no seu projecto de livro Costa a Costa – uma recolha exaustiva de imagens da costa portuguesa, todas marcadas pela ausência da figura humana (mas não das suas marcas na paisagem) e todas identificadas pelo dia, mês e ano em que foram tiradas. As imagens estruturam-se quase todas a partir da linha do horizonte, que frequentemente as divide de forma equitativa – em cima metade céu, em baixo metade mar. Todas as fotografias se distinguem e todas se equivalem. Existe claramente um programa (potencialmente inesgotável, como os programas devem ser), até porque ao lado, na página anterior, se lêem sempre local e data. Também o enquadramento, quase sempre frontal, afasta estas fotografias da procura de registar originalmente objectos familiares (tornar especial o trivial). Alberto Plácido não parece muito preocupado com a criação do excepcional.
Em Costa a Costa, e aplicando um termo cunhado por Jean-Luc Nancy, o fotógrafo é um “técnico da presença”, ou um “fazedor de instantes”: ao serem datadas, as imagens implicam-se num presente, conceito que não se pode aplicar à natureza (onde só existe passagem, e o que está depois é também o que está antes) e que logo está fora do mundo. Alberto Plácido não está, como parece à primeira vista, simplesmente a catalogar e inventariar o mundo, mas também e paradoxalmente a mostrar o que está fora dele – a precisão da data, do instante. Digamos que Alberto não pertence a nenhuma das duas grandes categorias em que Susan Sontag pretendeu dividir os fotógrafos: os cientistas e os moralistas. Não se limita ao inventário, mas também não tenta desvelar segredos ocultos e patrocinar (forçar) a excepção.

Nesta sempre provisória série de fotografias, todas a preto e branco, encontramos algumas quase negras, com o céu muito nublado e o mar a reflectir luz apenas numa estreita faixa da sua superfície – e não sabemos muito bem se a fotografia foi tirada ao anoitecer, ou durante uma tempestade. Alberto Plácido escolheu, não por acaso (já veremos porquê), uma destas escuras imagens para o seu projecto em Monsaraz. Na ermida de Santa Catarina, isolada e ainda longe da povoação, hoje praticamente sem ornamentos ou decoração interior mas com uma estrutura e uma métrica absolutamente singulares, colocou-se a ampliação de uma fotografia quase negra. Encerrou-se a porta de entrada, uma das maiores entradas de luz, que deve agora ser aberta e fechada por cada visitante. Apenas. E estas escolhas, mínimas, não deixam de desviar este primeiro gesto, aparentemente banal (colocar uma fotografia numa sala), da mera exposição de uma imagem. Alberto coloca em marcha uma máquina que vive da relação entre o espaço e a percepção do espectador; no fundo, mostra exemplarmente como uma fotografia, antes de ser uma imagem, é um dispositivo que envolve sempre o observador (o mesmo é dizer que objecto fotográfico e a sua recepção são inseparáveis). Neste caso, reconstitui-se a história da obra, ao mesmo tempo que se revelam as condições de aparecimento de qualquer fotografia. Como? No Alentejo, e em pleno Verão, deve-se contar com uma luz suficientemente forte para cegar o espectador que entra na ermida. Pouco a pouco, à medida que os olhos se adaptam à alteração lumínica, vão surgindo formas, que se tornam cada vez mais nítidas. Aparecem os contornos da construção, exactos, e a fotografia lá ao fundo, no espaço que bem podia acolher um altar, deixa gradualmente de parecer um écran apagado – como se sofresse um segundo processo de revelação. Neste sentido, a escura imagem de céu e mar – neste local específico –, também é uma espécie de auto-definição da fotografia, ou de realização da fotografia em si mesma. Para mais quando a luminosidade surge como elemento central da imagem: captam-se céu e mar, mas principalmente fotografa-se a luz, sem a qual não existe fotografia. Sem a qual não existe a imagem apresentada na ermida, permanentemente a ser produzida a cada abertura da porta, e por cada visitante que entra.

Percebe-se agora porque Alberto Plácido terá eleito uma imagem sombria – aquela que mais devagar os nossos olhos iriam conseguir revelar. Até porque, e sem querer de forma alguma relacionar directamente a fotografia ao divino, e assim justificar a sua justa presença numa ermida, é irreprimível aproximar o processo fotográfico da magia. Porque a fotografia é de certa forma uma extensão do objecto captado (aquele mar não é como o mar, é o mar), e porque o processo de revelação (que Alberto aqui reconstitui) é verdadeiramente epifânico.
Mas porquê esta imagem concreta, porquê o mar? Esta escolha, para quem respeitou tremendamente o espaço interior da ermida – que recusou tapar, ainda que parcialmente (a fotografia aqui exposta não assenta em nenhuma parede) –, parece-me querer comentar o espaço exterior (e não me refiro à arquitectura, mas ao sítio onde a edificação se insere), transformado pela recente presença da água nesta vila do interior, que veio alterar por completo a paisagem.

Existe aqui uma tremenda capacidade para dirigir a tenção do espectador para o que alguma vez prendeu a atenção do fotógrafo, ou melhor, para o que conduziu à existência da imagem. Para a luz, para o tempo de exposição – para o que esta fotografia diz sobre a fotografia; e para o carácter mágico da revelação. E isto incluindo-nos activamente, e ao espaço de exposição; tanto que na ficha técnica desta obra de Alberto Plácido deveriam constar os seguintes elementos: fotografia a preto e branco, luz intensa, penumbra, ermida, porta intermitentemente fechada (ou aberta), observadores.

Ricardo Nicolau, Julho de 2004